Réquiem para um Cão


Era mais do que um mero animal. Um irmão, aquele mais novo que não tive humano. Desde o distante 1º de abril de 2001 em que apareceu à trote curto e assustado atrás de meu pai, Nego se tornou mais que um bichinho de estimação. O cachorro preto e esguio venceu a desconfiança da matriarca, que sempre criava algum rebu quando adotávamos algum pobre animalzinho, e virou uma espécie de capanga canino do Seu João, meu pai. Aonde ia João, lá estava Nego. Nas pescarias nas quais faltava peixe, mas não animação, o cão montava guarda para evitar qualquer intempérie que a fauna ribeirinha pode causar a um ser humano. Em pouco tempo se tornou o melhor amigo de meu pai. Eram inseparáveis! Quando um aparecia, lá vinha o outro atrás. Se não era tratado a pão de ló, sua refeição dominical tinha frango e maionese. Três anos depois, já havia quebrado o recorde de convivência em nossa casa. A maioria de nossos animais de estimação ou morriam na BR-267, que corta os fundos de nosso terreno, ou na covardia de alguns vizinhos e seus pedaços de carne com tempero pra lá de duvidoso. 

Mas Nego soube se sobressair. Por mais de quatro anos saía em disparada só de ouvir a porta da sala se abrir, sempre na expectativa de um passeio com seu amo. No primeiro dia do sétimo mês de 2005 ele se despedia de seu grande amigo no portão. "Volta pra lá", ordenava meu pai com folego avariado por uma suposta pneumonia. Sua astúcia e atrevimento não o permitiram obedecer a ordem dada. Vazou a frágil cerca de bambu e rapidamente já estava ao lado de seu amigo no ponto de ônibus, mesmo sob protestos da Dona Neuza. Minutos depois, o afago na cabeça marcava o último encontro deles. Um mês e meio depois lá estava ele ao lado de seu grande amigo. Deitado à porta da capela mortuária, parecia entender que aquela caixa de madeira em que Seu João estava o afastaria dele para sempre. Naquele dia seu pelo perdeu o brilho. Suas orelhas outrora ávidas e espertas lhe caíram pela cabeça. Estava muito mais sentido do que qualquer outro membro da família, pois não sabia o que acontecia durante todo o tempo que o amigo esteve longe. Quando o concreto acabara por sepultar meu pai, percebi que fui insensível em não levantar Nego para olhar pela última vez seu amigo. Por meses o cão definhou em saudade. Mal saía do paiol em que dormia. Quando disparava na esperança de o barulho da porta da sala ser o de Seu João saindo para fazer um passeio, logo se desanimava ao ver que isso jamais aconteceria de novo.

Tempos depois ele reagiu. Mas se tornou um cachorro rebelde. Passou a ficar na rua, a brigar com outros vira-latas, e a chegar todo machucado. Frequentava e se alimentava em casas de antigos amigos de meu pai. Para nós ele passou a ser um conforto para a ausência de Seu João. Ver ele ali deitado no cantinho da varanda simbolizava uma espécie de vigilância. Para Nego, talvez essa vigília fosse uma dívida de gratidão por ter sido tratado como um membro da família por todos aqueles anos. A Dona Neuza que o diga, sempre se sentia mais segura com o franzininho valente ao seu lado. E mesmo ficando fora o dia todo, lá para tantas da noite estava ele a fazer seu papel latindo madrugada adentro. Chegava a irritar. 

No dia 1 abril de 2011 ele completou dez anos de convivência conosco. No meu trabalho, em meio as tarefas da labuta me lembrei da data. Sim ele era especial. No dia 22 de junho do mesmo ano, meu irmão e minha mãe o viram pela última vez balançando o rabo no meio da sala. Nego simplesmente sumiu. O desespero de Dona Neuza me machucava tanto quanto imaginar que ele talvez não aparecesse mais. E não apareceu. Minha mãe o procurou às margens da BR. Não estava. Era muito esperto para ser atropelado. Ninguém sabe, ninguém viu. Prefiro não pensar no que pode ter acontecido. Sou apenas grato pelo tempo que o tive como meu irmão. Sempre ali, na alegria e na tristeza. 

Outro dia sonhei com meu pai. Ele estava sentado na porta do paiol fazendo as miniaturas de carros de boi que gostava. Ao lado dele, no lugar onde sempre gostou de estar, repousava o Nego, com as orelhas ávidas e com o pelo brilhante. 

Havia voltado a ser feliz!


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