Baleia



Fabiano matou Baleia. Por que era necessário, ao menos em sua lógica grotesca de pura ignorância. Como poderia saber? Se martirizou por isso. Para quem conhece a obra-prima de Graciliano Ramos sabe que na realidade fictícia, mas real, criada pelo autor, até mesmo na ignorância reside a compaixão. Fabiano se criou da truculência, em que sobreviver e manter sua família viva, em um cenário de miséria extrema no sertão nordestino, estava acima de qualquer coisa. Mas, sabemos que ele se ressentiu. Baleia era mais do que uma cachorra ou um enfeite de família perfeita. Era uma integrante vivaz daquele círculo, que sofreu suas dores, se divertiu com os meninos, lhes arranjou comida e zelava por sua segurança.

Infelizmente nem todo animalzinho é tratado como um familiar e sim uma figura de status. Quanto mais nobre a raça, mais fotos e curtidas, mais o ego dos “donos” se infla. Mas, quando as prioridades mudam, não pensam duas vezes. Chegou o bebê! Dão o pet a um amigo. “Mas vai ter uma casa!”. Mas naquele coraçãozinho vai estar o sofrimento da mudança brusca, da extirpação de seus sentimentos. Dos males o menor, como dizem por aí. Aí papai tem que se mudar por causa do emprego. Não dá para levar, é apartamento. Não aceitam cães. Doar? Ninguém quer, é vira-lata. Abandona-o à beira da estrada, alguém de bom coração hei de adotá-lo, caso uma carreta não o ceife a vidinha.

E o vira-lata perambula. Escapa de tudo o que lhe é nocivo, carros, outros cães, doenças. Encontra em um lugar alguém que se importa, que lhe dá comida, água, um lugar para descansar o pelo. Entretanto, quem mais lhe pode ajudar também é sua maior ameaça. Nem todo bicho-homem é ruim, mas um ruim é o suficiente para maldades inquestionáveis. Sem saber o porquê, lhe oferecem algo com cheiro estranho para comer, como se não bastasse, lhe espancam. Sem entender se arrasta, não sente as patas de trás. Sangra e seu corpo não mais responde a seus pensamentos. Alguém tenta ajudar. Pessoas de branco e... não se dá conta, já se foi.

Fabiano matou Baleia por que o lugar onde vivia a ignorância vinha antes da emoção, ou mesmo da razão. Não tinha como saber... ou tinha, mas as prioridades eram outras. Mas ele se ressentiu. Quem leu (quem não, deveria) sabe que sofreu pelo que fez. Mas hoje, na mais próspera e “evoluída” região do país, não se espera a ignorância. Talvez não seja. Talvez seja apenas maldade mesmo. Se há apenas um vilão? Não, não há. O que espancou tem a mesma responsabilidade de quem abandonou. O que encomendou a morte é o mesmo que não faz nada para que cães não sejam tratados como zoonoses. Quem vende tem a mesma culpa de quem compra.

Pudera Fabiano ter vivido nos dias de hoje, em uma região mais próspera. Baleia teria se curado e morrido tranquila, de velha, com as orelhas repousadas sobre sua cabeça e o rabinho estirado ao pé da cama das crianças. E Fabiano, mesmo com todos os problemas que pudesse ter, dormiria em paz!



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seus vinte e poucos

VIVA O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA!

Um dia em setembro