Dois meninos


Pela janela do barulhento coletivo Gugu se deslumbrava com a paisagem. Nada de extraordinário, apenas mais do mesmo que sempre vira quando acompanhava a mãe nos passeios na “cidade”, forma estranha de como os periféricos chamam o centro da cidade. Era seu aniversário, por isso o motivo do passeio intransigente comandado pelo seu irmão, apenas três anos mais velho, mas que não demonstrava apreensão, mesmo que seus treze e poucos não passasse confiança alguma. Mas lá estava ele, determinado a cumprir uma promessa, tola, daquelas que falamos para que alguém nos deixe em paz, como foi o caso. Mas o pequeno não esqueceu. Lembrava dia após dia, contava-os com uma fidelidade sagrada. Sua mãe ria e passava uma reprimenda no filho mais velho por sugerir algo que não poderia cumprir. Ela, até poderia, se a labuta não lhe tirasse de casa seis dias por semana, dez horas por dia. Pai, não tinham, não conheciam, não lhes fazia falta. A mãe bancava a casa, pagava as contas e educava os filhos de forma a mantê-los longe dos vários vícios a que são expostos. Brincar na rua? Só sob seu olhar vigilante. Desde que sua avó morrera, Rafa, o mais velho, cuidava do menor. Estudavam direitinho, tinham boas notas e um avançado conhecimento, típico daqueles afeitos à leitura. Entretanto suas vidas, era o basicão mesmo, sobreviviam na esperança de que quando grandes, eles pudessem proporcionar melhores dias para aquela casa.

Mas a promessa, um sonho de gula ao qual o menino menor ficou preso, vidrado, era deles, só deles, e realizariam aquilo, mesmo que sozinhos. Com os vinte reais que Rafa ganhara de um tio, a mais de dois meses, desceram o morro. Quando o ônibus sacudiu no ponto da Rio Branco, cuspindo os dois para fora, sentiram o primeiro impacto de um rolé sem a mamãe. Bundada pra lá, bolsada para cá, fumaça de cigarro inconvenientemente sendo baforada pra todos os lados e gente de todas idades andando catatonicamente com os olhos pregados à tela do celular. Cambaleantes, se viram empurrados ao Parque Halfeld em meio a ambulantes, pipoqueiros, idosos, adolescentes e pombos. Rafa olhou em volta, suspirou, e desceu os olhos ao irmão que segurava a barra de sua camisa demonstrando fragilidade. Caminharam atentos até o relógio, que alternava 26° com 14:42, subiram em direção à Santo Antônio até serem cercados por dois policiais que pediram que o maior deles abrisse a pequena mochila que levava às costas. Sem que percebesse que soltara a mão do irmãozinho, Rafa obedeceu aos militares, que causavam pavor a qualquer morador de periferias, muito pelas histórias, hiperbólicas ou não, de vizinhos com experiências desagradáveis.

Gugu sentiu a mão da mulher tocar seu braço. Ela aparentava uns quarenta anos e trazia um óculos escuros enorme no rosto. Sentiu na sua boca o gosto de maracujá de seu perfume. Foi conduzido pela desconhecida até um vendedor de picolé e saboreava um de creme enquanto ela falava ao celular coisas como “aqui no Parque Halfeld”, “traz o carro”, “rápido”. Esqueceu-se do irmão, crianças são assim, qualquer prazer efêmero lhe compram atenção. Quando um carro prata encostou na borda do parque, a mulher o empurrou nas costas fazendo seu picolé cair. Desperto, se viu forçando o braço para se desvencilhar das unhas vermelhas que já o feriam. Quando as forças se esvaiam, sentiu a mulher tombar sobre seu corpinho e esborrachar um metro à frente. O homem do volante correu ao auxílio dela enquanto Rafa pegou o irmão pelo braço e seguiu em disparada pela Santo Antônio em direção a Catedral. Desceu a Espirito Santo e chegou à Rio Branco novamente. Respiravam afoitos e Gugu ensaiou um choro após um pito do irmão mais velho. Aquele passeio já os aborrecia e o mais novo já amaldiçoava seu presente.

Ziguezaguearam pelas ruas do centro. Gugu já entregara os pontos, cansado, triste, com um quase choro a importunar seus olhinhos. Rafa o puxou para dentro de uma loja, cheirosa e branca, tanto quanto a totalidade de pessoas que ali estavam. Foram recebidos por olhares inquisidores e atendidos com má vontade pela moça do balcão. “Não pode vender nada aqui”, sentenciou o rapaz do caixa. Rafa o ignorou e tirou um folheto da mochila mostrando-o para a atendente. Esta disse o preço antes que fizesse menção em pegar o que eles queriam. Fazendo as contas dentro de sua cabeça, era bom de matemática, o irmão mais velho se deu conta que necessitaria de mais vinte centavos para que a conta fechasse com as passagens do retorno. Revirou a mochila e a carteira surrada do Vasco em que guardava papéis sem importância. Nada. Perguntou para a moça se poderia ficar devendo vinte centavos, e recebeu um enfadonho balançar de cabeça negativo como resposta. Respirou fundo com os olhos inundados, devaneou sobre a possibilidade de alguém ali em uma daquelas mesas dar-lhes vinte centavos. Ao se virar viu Gugu namorar seu objeto de desejo num prato em frente a um homem de terno que falava freneticamente ao telefone. “Sai daqui macaquinho ladrão”, bradou o rapaz do caixa, que surgiu como uma entidade, dando um tapa na nuca do pequeno. O homem de terno protestou, empurrou o rapaz, enquanto Rafa foi amparar seu irmão que se abaixara após o impacto na cabeça. “Vou chamar a polícia, não se bate em criança, racista de merda”, disse o de terno. “Gente dessa cor aprende a ser bandido cedo”, foi a última coisa que os irmãos ouviram ao saírem a passos largos Santa Rita acima em direção à Rio Branco novamente.

Não queria mais. Queria sua casa, sua televisão, sua cachorrinha. Gugu esfregava os olhos com ansiedade. O ônibus sacolejava pelas tortuosas ruas do morro. Rafa segurava a mochila tenso, pensando no que havia feito, no impulso, contra todos os dogmas de sua mãe. Mas, não poderia deixar seu irmãozinho sem nada, deveria cumprir sua promessa. Estar ali, frente a frente a um croissant e não poder comê-lo seria decepcionante demais, traumático demais pro pequenino. Cutucou o irmão e deu-lhe um sorriso de canto de boca, complacente, sem humor, apenas com uma tristeza enorme por ter o feito enfrentar a realidade que o espera, cruel, incisiva, onde classe e cor são estopins de ódio e violência. Enfim, mesmo sob um remorso lancinante, abriu a mochila e tirou o croissant, que surrupiara da mesa enquanto o rapaz do caixa e homem de terno discutiam. Gugu abriu um sorriso melancólico, porém, assim mesmo pegou a iguaria e deu uma mordida demorada. A felicidade voltou aos seus olhos, e esqueceu-se até de oferecer ao irmão. Crianças, qualquer prazer efêmero.... Mas Rafa estava feliz, cumprira a promessa e ainda tirara lições muito importantes daquela tarde infame. Sorriu e afastou a penumbra da culpa. Foi por uma boa causa. 

Quando saltaram do ônibus, no ponto perto de sua casa, Gugu parou e com a cabeça baixa perguntou ao irmão, num lamurio, “O que ele falou é verdade?”; “O quê?”; “Que gente da nossa cor aprende a ser bandido cedo?”. Rafa parou, se abaixou na frente do irmão de forma a fitar seus olhos: “Nunca acredite na crueldade das pessoas. Ainda que insistam que você é menos por ser preto, viva sua vida e seja o melhor que puder ser. Só você poderá determinar que tipo de pessoa é e será, e sua... nossa cor, não entra nessa história”. Se abraçaram e foram recebidos pelos lambidos alegres da cachorrinha.

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