O feliz aniversário do Pato-rouco
Nunca tive uma festa de
aniversário quando pequeno. Nunca experimentei aquela adrenalina que deve ser
para uma criança esperar o momento de reunir a galerinha em brincadeiras mil,
se empanturrar de doces e salgados, e assoprar as velinhas. Ah, como sonhei em
assoprar as velinhas acompanhado do “é big, é big, é hora, é hora, rá-tim-bum”.
Mas não tive a sensação. Primeiramente pela condição socioeconômica insuficiente,
e depois pela inconveniência de se nascer entre o natal e o ano-novo. Quando
surgia a possibilidade de uma comemoração, vinha o “vamos comemorar junto com a
ceia”. Balela que uma criança não engole, de jeito nenhum. E os presentes? Bem,
quando ganhava era para os dois. Aceitava, óbvio, mas ressentia, pois no dia
30, neca de catibiriba. Além de tudo, meu pai nunca estava presente, só chegava
no dia 31, à tarde, sem mesmo a possibilidade de ouvir sua voz pelo telefone me
felicitando. Minha mãe fazia o que estava a seu alcance. Comprava um frango
fiado, fazia uma maionese de batata e chuchu, acompanhando o arroz com feijão
de sempre. “Mamãe ainda te dá um presente tá”, dizia ela com um sorriso
melancólico. Meus irmãos me abraçavam com carinho e me engambelavam o dia
inteiro, em especial minha irmã mais velha, provavelmente captando minha
insatisfação. Mas, eis que um dia 30 de dezembro, no meu décimo aniversário
algo surreal para aquela criança aconteceu.
O Tio Luiz, irmão de meu pai,
conhecido no pequeno distrito de Manejo como Pato-rouco, era um sujeito
pitoresco. Daqueles que carregam uma mística a respeito de sua personalidade,
que rendeu e rende até hoje histórias peculiares, impagáveis e um tanto
duvidosas. Mas, minha relação com ele, ao menos o que minha mente consegue
recuperar de vinte e dois anos atrás, nunca havia passado de um “Bença tio”, “Deus
te abençoe”. Não tinha nele qualquer admiração, pelo contrário, sentia certo
receio de me aproximar dele. Por quê? O Tio Luiz, assim como grande parte dos
homens manejenses, era um alcoólatra inveterado, daqueles que tomava “uma” antes
do café da manhã, que ficava sem se alimentar o dia inteiro, dormia na rua e se
machucava com os tombos que a embriaguez proporcionava. Mas eis que naquela
noite em que já me dava por satisfeito com o modesto jantar de aniversário, o
Tio Pato-rouco entrou para eternidade da minha história.
Deitado no sofá assistindo TV vi
a silhueta de sua cabeça se interpor entre meus olhos e a luz do poste da rua
na pequena janela improvisada na porta dupla de madeira. Seu cabelo black
power, cuidadosamente arredondado para combinar com o cavanhaque, era
inconfundível. “Opa, é o tio”, disse com sua voz rouca que dava sentido ao
apelido. Minha mãe abriu a porta e pude ver o motivo de sua visita inesperada.
Um refrigerante de laranja em uma das mãos e uma bola dente-de-leite debaixo do
braço. “Fiquei sabendo que era seu aniversário”. Não disse nada, ao menos não
lembro de ter dito alguma coisa. Apenas fitava a bola, o tão esperado presente
de aniversário, tão comum e barato, mas inédito em minha curta vida. Ele me
entregou e minha mãe pediu que o agradecesse. O abracei emocionado, e mesmo com
seu cheiro de cachaça quase insuportável, estava muito feliz por ele estar ali.
Ele comeu um pouco de comida requentada e dividiu o refrigerante comigo. Viu um
pouco de TV e se foi.
Apesar de anos depois minha mãe,
esposa e eu próprio ter feito comemorações de aniversário, nenhuma se comparou
àquela dos dez anos. Mesmo sem o bolo, a adrenalina, os doces e salgados, a
velinha e os inúmeros presentes, o pequeno gesto de meu tio foi o suficiente para
tornar aquele dia inesquecível. Depois disso, passei a tomar “bença” com gosto,
chamava ele para almoçar lá em casa, não virava o rosto quando o via bêbado.
Interesse? Pode parecer. Mas no mundo infantil, isso se chama gratidão. Contudo,
ele nunca mais voltou à minha casa, nem em aniversário, nem em dia algum. Em
algum dia de março, não me lembro qual, ele morreu. Vítima da bebida. Fiquei
triste, ainda mais quando vi meu pai chorar ao lado de seu caixão. E, em todos
os dias de meu aniversário lembro de sua silhueta à porta e de sua gargalhada
rouca. Se para muitas pessoas ele foi apenas mais um bebum, um personagem
mitológico de histórias peculiares, para mim ele foi meu Tio Luiz, a pessoa que
deu à criança que fui o feliz aniversário que jamais irei esquecer. Por isso,
obrigado!
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