Tangerina!
Naquela sexta-feira chuvosa nem
queria sair de casa. Minha mãe não permitia matar aula assim, arbitrariamente,
então tive de ir. Meus caderninhos no saquinho de açúcar não molhariam, mas
minha blusinha sim. Não tínhamos uma sombrinha, mas minha mãe dizia que “se for
rápido, não molha muito”. Não era maldade, e eu sabia disso. Sorte a minha. A
professora preparou uma surpresa para a turma: depois da merenda teríamos
gelatina! Endoidei. Nunca havia provado gelatina, isso aos 6 anos na 1ª série.
Ditados, fatos e a hora que não passava. Toca o sino e todo mundo vai merendar,
já com a cabeça na sobremesa. Eis que chega o momento. As canequinhas amarelas
e as colheres são distribuídas. Tentei não passar ansiedade de um debute e fui
um dos últimos a pegar em meio aos “hummm” dos coleguinhas. Me sentei lá no
fundinho, onde gostava de ficar até o fim daquele ano letivo. A primeira
colherada foi um tanto marcante. Aquele troço molenga que em contato com a língua
derretia. Era uma quantidade generosa, para se satisfazer mesmo.
Mas, no meio
do deleite me veio uma questão. Será que minha mãe já comeu gelatina? E aquilo
pesou tanto em minha consciência que resolvi não comer o restante, pouco mais
da metade. Escondi na minha carteira, aquelas antigas de madeira amarronzada. “Todo
mundo devolveu a caneca?”, sequer respondi. E ali a caneca ficou por mais uma
hora e meia. Vez ou outra e conferia para ver se estava tudo bem, e não estava.
Cada vez mais mole, ia se transformando em um suco grosso e estranho. Acabou
aula e agora o segundo desafio: sair com a caneca sem a professora ver. Esperei
o momento exato em que o bololô se formou na saída e me infiltrei. Sai com a
caneca debaixo da camisa e de repente me vi na rua, andando depressa e sozinho.
Sim, chovia grosso, e a grande maioria das crianças esperavam pelos pais e algo
que lhes protegeriam da chuva. Senti que a gelatina, agora aquosa, melava minha
barriga. Tive de leva-la na mão mesmo, com mais um desafio, que era impedir que
a chuva tornasse a sobremesa ainda mais líquida com minha mãozinha.
Foram 300
metros de provação. Ao chegar em casa, minha mãe fazia almoço. Zangou-se por eu
não ter esperado a chuva estiar e me mandou tirar a roupa molhada. Mas antes,
estiquei a mão com a canequinha. “O que é isso? Suco?”. Balbuciei um “gelatina”
enviesado. Minha mãe me olhou por um momento, sem me dar sequer uma pista do
que tivesse pensando. Fui trocar de roupa e não sei o porquê, mas chorei.
Talvez fosse alegria por ter cumprido minha missão ou por conseguir dividir com
minha mãe algo que tinha sido importante para mim. Almocei e ao final da
refeição ela me devolveu a canequinha. “Obrigado filho, mas é de tangerina, não
gosto de tangerina. Pode comer”. No momento fiquei feliz, por ela ter me
agradeci e por ter ficado com aquela geleca de sobremesa.
Muitos anos mais
tarde a gente já tinha condição de ter gelatina de sobremesa. Ao ver minha mãe
se deliciar com uma colher cheia de gelatina de tangerina, toda essa história
me voltou à mente. Minha mãe havia mentido, apenas para que eu me sentisse
feliz. Ali tive a certeza de que eu estava onde estava, e estou onde estou,
tudo por que ela fez de tudo para que eu e meus irmãos não fossemos
prejudicados.
“O que uma mãe não faz pelos filhos né”, ouvi de alguém
certa vez.
“Diz não gostar de tangerina”, respondi.
Te amo mãe, obrigado por tudo!
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