O Menino de Realengo
O Menino de Realengo sempre foi um rapaz triste e desde cedo sofreu com a exclusão da sociedade. Introspectivo, vivia às margens das frivolidades púberes de seus colegas de escola. Não participava das atividades, não ia lá na frente resolver problemas no quadro. Na chamada, sua voz quase inaudível era sempre substituída por algum gracejo debochado de um espírito de porco pré-adolescente. Era açoitado sem açoite, pisoteado sem pé, e sem entender o porquê de tudo aquilo.
O Menino de Realengo foi crescendo. Crescendo dentro de sua alma também estava o ódio que sentia de tudo e de todos. Depois da morte de sua única amiga, sua mãe, perdeu completamente o rumo. Cada vez mais fechado, foi se tornando uma efígie encostada em um canto qualquer da sala de aula ou de outros lugares os quais costumava freqüentar. Não conversava com ninguém, não brigava com ninguém, não beijava ninguém. Era um zero sempre à esquerda da esquerda de qualquer atividade que reunisse os jovens do bairro.
De repente o Menino de Realengo sumiu. Depois de algumas semanas sua ausência foi notada por um sacana qualquer. Onde está aquele bundão? Aquele bicha? Sua insignificância diante dos outros jovens do bairro foi notada por aqueles que gostavam de humilhá-lo para se sentirem melhor. Depois de uma ou duas semanas, acabaram por esquecê-lo de vez. Deve ter morrido ou virado mulher, diziam.
Mas o Menino de Realengo não estava morto. Em seu quarto, na frente de seu mais fiel amigo, pesquisava na rede alguma coisa para dar sentido a sua vida de Zé ninguém. Por meses se estagnou ante o computador. Perdeu aniversários de familiares e até a sua formatura não compareceu. Esses meses se tornaram anos. Dois, três ou quatro, nem sabia mais em que ano estava. O pessoal acreditava que tinha se mudado. Os únicos seres de carne e osso que mantinha contato eram sua tia e um primo que também o maltratava e que moravam com ele.
Nesse tempo enclausurado em seu auto-exílio virtual, o Menino de Realengo finalmente tinha encontrado algo que o chamou a atenção. Foi um autodidata e começou a seguir vários e vários blogs e sites que se referiam ao tema. Sua aparência estava diferente. Cabelos compridos e barba por fazer, estava imitando alguém que aprendeu a admirar pelo monitor de seu PC. Seu espírito parecia mais leve, e até cumprimentava os parentes dentro de casa.
O Menino de Realengo tinha um plano. Primeiro foi à escola onde estudou. Lá maquinou qual seria o melhor local para agir. Havia falado com a diretora do colégio e proposto algo a ela e foi aceito. Depois comprou um novo instrumento para executar seu plano. Era de segunda mão e de origem duvidosa, mas e daí? Seria o dia de sua redenção. Mudaria seu destino no mesmo local onde foi execrado por toda sua infância e adolescência.
Naquela manhã o Menino de Realengo acordou cedo. Colocou uma bolsa grande nas costas e saiu sem falar com ninguém. Ficou por quase duas horas encostado em uma árvore de frente a escola. Não desistiria ali. Entrou com permissão da diretora. Caminhou vagarosamente em direção ao refeitório onde se encontrava quase todo o contingente do colégio. Entrou, colocou a bolsa no chão. O fato chamou atenção de muitos. O Menino de Realengo abriu a bolsa e tirou uma Giovaninni surrada e começou a tocar.
Naquele momento estava executando sua vingança contra todos. Todos que o chamara de ninguém, que duvidaram de sua capacidade e o fizeram acreditar que aquela sentença era verdadeira. O Menino de Realengo tocava para espantar os demônios e para sentir o que é estar sendo observado e admirado. Aprendeu com aquele ato que a gente é o que acredita ser.
Naquele momento o Menino de Realengo acreditava ser um músico respeitado, ou mais do que isso, acreditava ser um ser humano. E por mais que tenha recebido vaias de alguns, outros aplaudiram. Só aí ele percebeu que o mundo sempre será feito de bons e maus, e aprendendo a se colocar no meio termo deste maniqueísmo sócio-cultural é que viveremos e sobreviveremos até o fim de tudo.
Mas, infelizmente, nem todos os Meninos de Realengo conseguem achar esse meio termo.
Dedicado à família das crianças mortas no massacre de Realengo.
O Menino de Realengo foi crescendo. Crescendo dentro de sua alma também estava o ódio que sentia de tudo e de todos. Depois da morte de sua única amiga, sua mãe, perdeu completamente o rumo. Cada vez mais fechado, foi se tornando uma efígie encostada em um canto qualquer da sala de aula ou de outros lugares os quais costumava freqüentar. Não conversava com ninguém, não brigava com ninguém, não beijava ninguém. Era um zero sempre à esquerda da esquerda de qualquer atividade que reunisse os jovens do bairro.
De repente o Menino de Realengo sumiu. Depois de algumas semanas sua ausência foi notada por um sacana qualquer. Onde está aquele bundão? Aquele bicha? Sua insignificância diante dos outros jovens do bairro foi notada por aqueles que gostavam de humilhá-lo para se sentirem melhor. Depois de uma ou duas semanas, acabaram por esquecê-lo de vez. Deve ter morrido ou virado mulher, diziam.
Mas o Menino de Realengo não estava morto. Em seu quarto, na frente de seu mais fiel amigo, pesquisava na rede alguma coisa para dar sentido a sua vida de Zé ninguém. Por meses se estagnou ante o computador. Perdeu aniversários de familiares e até a sua formatura não compareceu. Esses meses se tornaram anos. Dois, três ou quatro, nem sabia mais em que ano estava. O pessoal acreditava que tinha se mudado. Os únicos seres de carne e osso que mantinha contato eram sua tia e um primo que também o maltratava e que moravam com ele.
Nesse tempo enclausurado em seu auto-exílio virtual, o Menino de Realengo finalmente tinha encontrado algo que o chamou a atenção. Foi um autodidata e começou a seguir vários e vários blogs e sites que se referiam ao tema. Sua aparência estava diferente. Cabelos compridos e barba por fazer, estava imitando alguém que aprendeu a admirar pelo monitor de seu PC. Seu espírito parecia mais leve, e até cumprimentava os parentes dentro de casa.
O Menino de Realengo tinha um plano. Primeiro foi à escola onde estudou. Lá maquinou qual seria o melhor local para agir. Havia falado com a diretora do colégio e proposto algo a ela e foi aceito. Depois comprou um novo instrumento para executar seu plano. Era de segunda mão e de origem duvidosa, mas e daí? Seria o dia de sua redenção. Mudaria seu destino no mesmo local onde foi execrado por toda sua infância e adolescência.
Naquela manhã o Menino de Realengo acordou cedo. Colocou uma bolsa grande nas costas e saiu sem falar com ninguém. Ficou por quase duas horas encostado em uma árvore de frente a escola. Não desistiria ali. Entrou com permissão da diretora. Caminhou vagarosamente em direção ao refeitório onde se encontrava quase todo o contingente do colégio. Entrou, colocou a bolsa no chão. O fato chamou atenção de muitos. O Menino de Realengo abriu a bolsa e tirou uma Giovaninni surrada e começou a tocar.
Naquele momento estava executando sua vingança contra todos. Todos que o chamara de ninguém, que duvidaram de sua capacidade e o fizeram acreditar que aquela sentença era verdadeira. O Menino de Realengo tocava para espantar os demônios e para sentir o que é estar sendo observado e admirado. Aprendeu com aquele ato que a gente é o que acredita ser.
Naquele momento o Menino de Realengo acreditava ser um músico respeitado, ou mais do que isso, acreditava ser um ser humano. E por mais que tenha recebido vaias de alguns, outros aplaudiram. Só aí ele percebeu que o mundo sempre será feito de bons e maus, e aprendendo a se colocar no meio termo deste maniqueísmo sócio-cultural é que viveremos e sobreviveremos até o fim de tudo.
Mas, infelizmente, nem todos os Meninos de Realengo conseguem achar esse meio termo.
Dedicado à família das crianças mortas no massacre de Realengo.
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