Crônicas da saudade: 19:44
Era uma quarta-feira. Cansado
depois de mais uma noite de serviço no 10º Batalhão de Infantaria, precisava
demais de descanso. A cabeça estava a mil. Naquele dia havia descoberto que meu
pai estava com câncer e que um de seus pulmões já não funcionava mais. Lembro
que meu irmão disse mais uma dezena de frases sobre o tratamento, mas não ouvi
mais nada. Apenas equacionei algo que sempre pensei depois que esta doença (que
dizem para não falar o nome) começou a matar mais que a Aids os famosos dos
noticiários, que câncer + pobre = morte.
Ao ouvir a deliciosa melodia que marcava
o final do expediente, coloquei uma mochila nas costas e fui para casa de meus
amigos. A casa da Dorvalina e seus filhos sempre foi para mim uma segunda casa,
onde sempre fui tratado com carinho e amizade, como parte da família mesmo. Pouco
disse depois que cheguei. Ainda não tinha forças para dizer aquela notícia sem
chorar. Não queria chorar, tinha de ser o forte, aquele que ampararia todos
quando o momento, que depois da equação acreditei ser inevitável, chegasse.
Apenas me deitei na cama debaixo do beliche e assistia a TV.
Às 19:18 meu telefone tocou. Era
meu irmão me perguntando se já havia chegado ao HU para a visita noturna ao meu
pai, que se iniciara Às 19 horas. Disse que não. Então me detonou, explicou que
não poderia ir lá, não daria tempo de sair do serviço e chegar a tempo. Nossa
mãe e nossa irmã também não iriam, pelo motivo que não lembro, e havia me dito
tudo isso de manhã, no momento da notícia avassaladora. Mas obviamente não me
lembrava.
Com um salto calcei meu tênis,
peguei a mochila e sai. Lembro de ter dito tchau para algumas pessoas na sala,
não me lembro quem eram e nem expliquei o motivo de tanta pressa. Corri até o
fim da rua torcendo para que não caísse no vácuo dos horários de ônibus, quando
não se passa nenhum coletivo sequer. Mas dei sorte. Um 539 passava naquele
exato momento. Fora do ponto saltei em sua frente. O motorista meio contrariado
parou. Sentei bufando e olhando desesperadamente para o relógio a cada parada
nos pontos caminho a fora.
O ônibus parou. Nem lembro de ter
atravessado a rua, mas de entrar no hospital. Perguntei pelo paciente e o
quarto. A mulher da recepção estava indiferente ao telefone. Depois de alguns
instantes me atendeu, me informou. Parei em frente ao quarto, respirei fundo,
não queria chorar, nem parecer triste. Olhei a hora, 19:44. Entrei e vi meu pai na
cama, de olhos fechados. Gelei. Mas, logo após abriu os olhos e me lançou um
olhar de surpresa. “Achei que ninguém vinha”. Sorri e disse que atrasei por que
confundi a hora. Naquela noite pouco conversamos, sabia que mais do que eu, ele
estava despedaçado pela notícia. Quando a enfermeira informou o fim da vista, o
abracei. Despedi e sai. Queria voltar e dizer tudo o que passei para estar ali
às 19:44, e como sempre estaria em qualquer lugar que ele precisasse de mim.
Quando desci as escadas que ligam
o HU à Avenida dos Andradas chorei. Como nunca chorei na vida, por tudo o que meu
pai estaria sofrendo e tudo o que sofreria. Queria que aquilo acabasse logo, que
não sofresse mais. E naquele domingo, dia dos pais, acabou. Mas prefiro pensar
que o que se acabou aquele dia foi apenas seu sofrimento, injusto para alguém
como ele. Um presente se imaginarmos o quão irreversível era tudo aquilo
naquele momento. Mas meu pai sempre estará vivo, na memória daqueles que o ama,
e será assim, quando a última dessas pessoas se for.
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